domingo, 28 de fevereiro de 2010

No momento mais agudo de si


Ao leito de tuas imagens,
Minha diversão lisonjeira,
Arrebato-me com definição
Naquelas que te evidenciam
E que por acaso, protagonizo
Nessa sua agudez cravada
De abrir-se sem couraças
Através da parede de vidro
Que de mim te separa...

Entre cúpidas palavras polidas
Tua língua me faz presente
No pensamento aflorado
Do gosto que me aprofunda em si
Em uma gélida noite quente
Sem sossego, amor, te garanto
A mais direta força sente
A entrega de um escravo
Ou uma domagem imponente

A distância, restam os sonhos
Das mãos que suspendem o corpo cálido
E o olhar, que não vaga longe
Te percebe e te reverência
No súbito movimento de te acolher
- sem amarras –
Onde habitam minhas aspirações
Onde ao seu jardim posso converter-me
Naquilo que mais desejas...

Saturnina 1



 
*Anke Merzbach - Melancholisch

SATURNINA
1. Imobilidade
Suas costas quase se entregaram totalmente ao encosto da cadeira de balanço. Quase. Algo a faz estar ali e não estar também. Um misto de tédio e pulsos de inquietação se afirmam nos confins de sua imagem exata, dos traços seguros e também delicados de seu semblante. Mas sua perturbação não transpareceria se, por suposto, alguém lhe observasse – algo inexplicável vibra só para si, como se fosse rasgar-lhe a carne para sair e tomar vida - um grito estridente ou como se sua figura lindamente distinta fosse um borrão, uma imagem medonha e turva, mal esculpida.
As mãos alvas e magras seguram um livro em seu colo, sobre o vestido tão longo e negro como a noite, num contraste. Repara em suas próprias extremidades e tenta impressionar-se com algo que lhe fugisse à naturalidade: tudo está em seu lugar como há tempos sempre esteve. Tudo paira em uma dinâmica tão perfeita que chega a lhe causar um topor enauseante.
Seus olhos, então, lançam-se para fora da janela e perdem-se nos galhos pouco folhados que ostentam heroicamente os tufos de neve branca – destoam-se destes ao tentar  esconder o verde temporão que teima em não secar. Há um riacho que também não congelou, em resistência a nevasca da noite anterior. E sua própria alma parece resistir a si mesma, numa existência suspendida. Mesmo assim, nada é capaz de lhe prende maior atenção – nem a beleza mórbida e fugaz da tarde cinzenta de inverno.
E o tempo é seu contraponto, como uma entidade antagônica que destoa de toda sua exasperação – o galope do pêndulo do relógio instiga-lhe maior impaciência, como se algo estivesse para acontecer, algo que transformasse sua vida numa estática eterna e desmedida. Tudo no relógio é ricamente adornado e entalhado, menos suas horas – elas seguem independente de sua angústia, e não seguem o suficiente para ultrapassarem a mesma.
O calor aconchegante, quase febril, da ampla cozinha faz sua cabeça girar em pensamentos que lhe fogem, como se não fosse hora de entreter-se em imagens mentais, mas tempo de esvaziar-se de si. Pudera ousar tanto! A alma é tão atribulada de coisas (passadas, futuras e marcas que se fazem duradouras) que só de pensar em tamanha impossibilidade algo lhe comprime o peito e lhe desgasta ainda mais. Ou talvez o problema esteja, entre tantas coisas que seguem consigo, no fato de nenhum de seus pensamentos lhe preencher, em nada neste mundo lhe completar. É estar saturada de coisa alguma – uma alma com um fundo falso, uma abulia abissal, que tudo lhe suga e lhe esgota. Mesmo tudo o que se abstrai de si, de uma forma ou de outra, não lhe serviria de nada. É justamente estar defronte ao nada e sentir-se arrebatada por isso.
O fogo que crepita traça um leve rubor na face clara, ardendo-lhe a pele e acendendo ainda mais a agonia em seu peito: o estalar do abeto em brasa, o descompasso do relógio com a sua alma, as imagens dos adereços cotidianos (objetos de afazeres da criadagem), que à sua vista, ganham o ar vívido de um relevo bizarro, vazado - tão perturbador quanto esta parede vazia, sem quadros, a sua frente. A falta de objetos e o excesso deles a fazem girar em sua própria mente, em voltas absurdas, multicoloridas; as imagens que lhe cercam e sua própria imagem destoam tanto de seu interior que a fazem ofegar e largar-se de si – o pânico progressivo lhe invade, como uma fera errante prestes a se evidenciar.
(...)
E desse turbilhão de sensações que eclodem em seu universo interno quase nada acusa em seu exterior – apenas um suspiro mais profundo. E quase nada, em si ou no ambiente, se move divergentemente: o barulho do relógio, como sempre, fissura o ar com cuidado, as labaredas continuam a envolver os pedaços de madeira na lareira, um gato tenta sem atritos alcançar uma pequena aranha entre a lenha de um cesto... tudo está como deveria estar e tudo parece estar à turva distância, num mundo que não é o seu, num mundo que não lhe interessa.
(Continua... se eu achar que devo postar a sequência)


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

a brasa e o momento minucioso...


não é soez a carne que a língua toca
a cada investida, um novo sabor se afirma,
cintila na alma que o corpo todo aloca
o pensamento provecto que resgata a intenção
da sede tácita que não mais se estima
de quem não mais sabe dizer não...
e que a si em favor do desejo sufoca...

liquefaço-me em picaresca voluptuosidade
na perspícua unidade da tua entrega
a ti perante, em doma, reafirmo o teu instinto
a parte animal que teu corpo não renega
que entre as mãos prende-me na intermitente insaciabilidade
e com as ofegantes intenções do teu olhar faminto
meu dorso não se retrai, porque minha alma nada te nega...

e nos pungentes momentos em que meu corpo te derrota
tu me devoras mais que qualquer palavra impressa
a breve carne, todavia, antecede o limiar poético:
sem teus lábios em meu peito, o verso não regressa
sem o momento vivido, todo sentido se esgota
sem teus gemidos, o poema é mero adorno imagético
mas é na eternidade da escrita que a lascívia se confessa...


* Não me pergunte a autoria da foto... não sei...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Alegoria




eu luto

eu grito

a mim, atormento

eu bato

e caio mil vezes...

cortes púrpura me marcam

na pele toda, uma sentença...

o sangue e o pó

não finjo

e no confronto de mim

EU sempre venço

Elegia (?)

 Anke Merzbach

condição suspendida
a alma existe na sede de ser...
e de se transpor
da superfície humana 
- dos dejetos táteis de futilidade
que à vida massifica -
na obscuridade do indivíduo
- farpas de mim, fraturas antigas
ou pequenas gotas do que sou, aos raios de sol
num quarto escuro...

deseja-me ser o que sou
taciturna figura que a mim se mostra
não nas imposições da vida cotidiana,
mas no silêncio que me nutre
enquanto seleta de palavras
colhidas na sombra desta noite, ou de outra qualquer...


 *Ao som de "Vide cor Meum" (Patrick Cassidy)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

viver

Anke Merzbach

(...)
no descontentamento a cada trago de ar
teimamos em viver dias intensos...
destes,
como uma lâmina de papel
que se aprofunda nas digitais do dedo
em slow motion

mesmo com motivos mornos, vive-se...
e a busca vicia-nos
mais que o próprio encontrar...
não mais que a estática flórea do sentir...

pois viver é isso:
uma distância constante do descabido
- aproximação!
o encontro pertinente do improvável
- espera!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Alexander McQueen (inspiração) - I LOVE THE DARK SIDE...


“People ignore the ugly things in life but within this they are missing the beauty that lies under the rotten fruit.” – Alexander McQueen

*paz e luz onde quer que vc esteja...




Vou abrir um espaço aqui entre meus textos para expressar minha indignação contra a estupidez humana! Como muitos devem saber, na última quinta-feira, faleceu em Londres o estilista fantástico Alexander McQueen. A causa da morte, conforme divulgado amplamente pela mídia internacional, fora suicídio. Poderia ter sido qualquer outra causa, mas McQueen se suicidou...

Compreendendo que o estilista tirou sua própria vida - sua PRÓPRIA vida, não a de mais ninguém - não abro este espaço para julgá-lo (jamais o faria e, na minha opinião, não há sentido nisso), e não permitirei que outros o façam... nem se trata, todavia, de se fazer apologia ao suicídio...

Mas o motivo deste post, como disse é outro... a maioria é quase sempre burra! O espaço de Lilian Pacce - o MSN Moda, que por acaso sou fã e leitora regular, uma vez que trata a moda com o devido respeito, não como um mero adorno humano, mas como linguagem e expressão artística - fez uma retrospectiva sobre carreira de McQueen. No final do post, como sempre acontece, abre-se um espaço para comentários, no caso, homenagens ao estilista morto. O que mais me impressionou - e por mais aguçado que seja meu lado misantropo, ainda me impressiono - foi a quantidade de gente arrotando falsa moral para justificar o suicídio de McQueen como "uma falta de Deus" ou como se o mesmo tivesse sucumbido ao "dinheiro e ao poder"...

O problema maior se torna quando se diz que sua obra era "demoníaca":
"Coitado!!! Que desfile sombrio, que sapatos diabólicos! que maquiagem feia e sangrenta, que cabelos, puxando p/ chifres!!! É o reflexo da sua alma! Infelizmente ele só poderia acabar assim! Agora ele estará junto de todos estes espíritos malígnos, q. colocaram na cabeça dele, q. se ele se matasse ele reencontraria a sua mãe! (...)"... Pode? Pessoas que não entendem a lógica da moda, da arte em geral, usam seus preceitos religiosos para condenar um trabalho de que nem têm ideia do que se trata... julgam o trabalho pela causa da morte... Juro que eu me revoltei... ainda me revolto com isso...



A estupidez humana não tem limites... e nem digo isso para ofender religião alguma (
que isso fique claro)... mas sempre quando alguém morre por suicídio (ou de outra causa tabu) chega uma dúzia de urubus para condenar e desmerecer o trabalho de uma vida inteira... inveja? Intolerância? Falta de noção? Todos estes parecem ter total conhecimento sobre a vida do indivíduo-McQueen, mais que o próprio talvez... todos estes julgam o mundo pelo próprio umbigo, sem penetrar jamais nos seus próprios lados mais escuros, o mais sombrio da natureza humana (e que é inerente a todos nós...)

McQueen buscava inspiração no não-óbvio e fazer arte é isso: sair da zona de conforto, colocar o dedo nas próprias feridas, buscar beleza no que muitos consideram podridão, doença... no "lado negro da força". E isso pode doer... e isso pode matar... mais que o suicídio...

Me identifico muito com este movimento, com esta busca pelo não-óbvio - como todos que acompanham este blog já sabem... quando buscamos inspiração nos nossos fragmentos mais profundos e mais sombrios, não nos tornamos cruéis ou "demoníacos" por isso...



Chego à conclusão de que ainda vivemos num mundo anos-luz da compreensão de si e do alheio... num mundo de gente vazia e cega que se acha melhor do que todos aqueles que são diferentes de si, mas que, mesmo assim, acha que ganhará um passe-livre para o reino dos céus...

Não cabe a ninguém julgar... a beleza existe em dimensões múltiplas, como tudo no mundo...

**para acessar o site LP - MSN Moda e seus comentários:

http://msn.lilianpacce.com.br/home/alexander-mcqueen-retrospectiva-homenagem/


transbordamento (fragmento)


"(...) O excesso do que sou

Te transborda

E tudo o que em ti vacila...

Me faz viva

num universo

de instigação..."


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

lussuria *


os lábios
profanam
enquanto a língua
vacila
e não diz
nada
apenas o que possa
ser experimentado
sem o verbo


e segue
o esvaziar-me
de mim
do que represento
e nas pontas dos dedos
nenhuma solidão
apenas impulsos
latejam
latejam
latejam

os pés nus
(e todo o resto)
caminham no piso escuro
sala a dentro
penetrando a noite
sem atritos morais...
anseios e música
vibram
a pele
e o azulejo

a noite
não dorme
nem os lábios
nem a língua
nem os pés
nem a música...
em tudo
há lascívia
ou só em meus olhos...

ou nos olhos da figura oposta...

*Luxúria... lascívia (italiano)

devaneios tolos sobre a dor

*não sei a autoria da imagem... sorry!


a DOR nunca é só poética...
é claridão consciente...
descontínua
como a neve

é finita! acredite!
de uma forma ou outra...
só existe entre sua causa e
seu desfecho...

mas neste prazo de validade,
sem data específica
há um território quase intocado,
possível de experimentações todas...
cheio de imagens instigantes
e sensações estranhas...

a dor nunca é o que aparenta...
é, todavia, mais que exclusivamente dor...
como tudo no mundo

sementes

(2:51 a.m)
entalhei no medo
- sementes -
para que desta água parada
nasça a mais linda luz soturna,
um misto,
de ímpeto criativo
coragem
lascívia
abismo
e contentamento...

(e quem sabe um pouco de paz descontínua!)

todo dia... e noite a dentro





(as narinas ardem no ofuscante parto do sol deste novo dia, dos mesmos dias,
e do sereno da noite vencida)

mas...
as narinas ardem
no excesso
da rotina


sejamos mais uma vez o caos e a contradição
a inversão do princípio
de nossos próprios fins
sem meios ou lacunas

#


alvoreça outra coisa
um ser que não este
em brutos sentimentos
lascados, afiados sem medo da lamina cotidiana

#

no pó amarelo das ruas noturnas
postes e postes e entre avenidas
encontro o acalanto visual
que embala as novas tentativas...

(mesmo na ausência do movimento, dançamos...)