Suas costas quase se entregaram totalmente ao encosto da cadeira de balanço. Quase. Algo a faz estar ali e não estar também. Um misto de tédio e pulsos de inquietação se afirmam nos confins de sua imagem exata, dos traços seguros e também delicados de seu semblante. Mas sua perturbação não transpareceria se, por suposto, alguém lhe observasse – algo inexplicável vibra só para si, como se fosse rasgar-lhe a carne para sair e tomar vida - um grito estridente ou como se sua figura lindamente distinta fosse um borrão, uma imagem medonha e turva, mal esculpida.
As mãos alvas e magras seguram um livro em seu colo, sobre o vestido tão longo e negro como a noite, num contraste. Repara em suas próprias extremidades e tenta impressionar-se com algo que lhe fugisse à naturalidade: tudo está em seu lugar como há tempos sempre esteve. Tudo paira em uma dinâmica tão perfeita que chega a lhe causar um topor enauseante.
Seus olhos, então, lançam-se para fora da janela e perdem-se nos galhos pouco folhados que ostentam heroicamente os tufos de neve branca – destoam-se destes ao tentar esconder o verde temporão que teima em não secar. Há um riacho que também não congelou, em resistência a nevasca da noite anterior. E sua própria alma parece resistir a si mesma, numa existência suspendida. Mesmo assim, nada é capaz de lhe prende maior atenção – nem a beleza mórbida e fugaz da tarde cinzenta de inverno.
E o tempo é seu contraponto, como uma entidade antagônica que destoa de toda sua exasperação – o galope do pêndulo do relógio instiga-lhe maior impaciência, como se algo estivesse para acontecer, algo que transformasse sua vida numa estática eterna e desmedida. Tudo no relógio é ricamente adornado e entalhado, menos suas horas – elas seguem independente de sua angústia, e não seguem o suficiente para ultrapassarem a mesma.
O calor aconchegante, quase febril, da ampla cozinha faz sua cabeça girar em pensamentos que lhe fogem, como se não fosse hora de entreter-se em imagens mentais, mas tempo de esvaziar-se de si. Pudera ousar tanto! A alma é tão atribulada de coisas (passadas, futuras e marcas que se fazem duradouras) que só de pensar em tamanha impossibilidade algo lhe comprime o peito e lhe desgasta ainda mais. Ou talvez o problema esteja, entre tantas coisas que seguem consigo, no fato de nenhum de seus pensamentos lhe preencher, em nada neste mundo lhe completar. É estar saturada de coisa alguma – uma alma com um fundo falso, uma abulia abissal, que tudo lhe suga e lhe esgota. Mesmo tudo o que se abstrai de si, de uma forma ou de outra, não lhe serviria de nada. É justamente estar defronte ao nada e sentir-se arrebatada por isso.
O fogo que crepita traça um leve rubor na face clara, ardendo-lhe a pele e acendendo ainda mais a agonia em seu peito: o estalar do abeto em brasa, o descompasso do relógio com a sua alma, as imagens dos adereços cotidianos (objetos de afazeres da criadagem), que à sua vista, ganham o ar vívido de um relevo bizarro, vazado - tão perturbador quanto esta parede vazia, sem quadros, a sua frente. A falta de objetos e o excesso deles a fazem girar em sua própria mente, em voltas absurdas, multicoloridas; as imagens que lhe cercam e sua própria imagem destoam tanto de seu interior que a fazem ofegar e largar-se de si – o pânico progressivo lhe invade, como uma fera errante prestes a se evidenciar.
(...)
E desse turbilhão de sensações que eclodem em seu universo interno quase nada acusa em seu exterior – apenas um suspiro mais profundo. E quase nada, em si ou no ambiente, se move divergentemente: o barulho do relógio, como sempre, fissura o ar com cuidado, as labaredas continuam a envolver os pedaços de madeira na lareira, um gato tenta sem atritos alcançar uma pequena aranha entre a lenha de um cesto... tudo está como deveria estar e tudo parece estar à turva distância, num mundo que não é o seu, num mundo que não lhe interessa.
(Continua... se eu achar que devo postar a sequência)
no descontentamento a cada trago de ar
teimamos em viver dias intensos...
destes,
como uma lâmina de papel
que se aprofunda nas digitais do dedo
em slow motion
mesmo com motivos mornos, vive-se...
e a busca vicia-nos
mais que o próprio encontrar...
não mais que a estática flórea do sentir...
pois viver é isso:
uma distância constante do descabido
- aproximação!
o encontro pertinente do improvável
- espera!
“People ignore the ugly things in life but within this they are missing the beauty that lies under the rotten fruit.” – Alexander McQueen
*paz e luz onde quer que vc esteja...
Vou abrir um espaço aqui entre meus textos para expressar minha indignação contra a estupidez humana! Como muitos devem saber, na última quinta-feira, faleceu em Londres o estilista fantástico Alexander McQueen. A causa da morte, conforme divulgado amplamente pela mídia internacional, fora suicídio. Poderia ter sido qualquer outra causa, mas McQueen se suicidou...
Compreendendo que o estilista tirou sua própria vida - sua PRÓPRIA vida, não a de mais ninguém - não abro este espaço para julgá-lo (jamais o faria e, na minha opinião, não há sentido nisso), e não permitirei que outros o façam... nem se trata, todavia, de se fazer apologia ao suicídio...
Mas o motivo deste post, como disse é outro... a maioria é quase sempre burra! O espaço de Lilian Pacce - o MSN Moda, que por acaso sou fã e leitora regular, uma vez que trata a moda com o devido respeito, não como um mero adorno humano, mas como linguagem e expressão artística - fez uma retrospectiva sobre carreira de McQueen. No final do post, como sempre acontece, abre-se um espaço para comentários, no caso, homenagens ao estilista morto. O que mais me impressionou - e por mais aguçado que seja meu lado misantropo, ainda me impressiono - foi a quantidade de gente arrotando falsa moral para justificar o suicídio de McQueen como "uma falta de Deus" ou como se o mesmo tivesse sucumbido ao "dinheiro e ao poder"...
O problema maior se torna quando se diz que sua obra era "demoníaca": "Coitado!!! Que desfile sombrio, que sapatos diabólicos! que maquiagem feia e sangrenta, que cabelos, puxando p/ chifres!!! É o reflexo da sua alma! Infelizmente ele só poderia acabar assim! Agora ele estará junto de todos estes espíritos malígnos, q. colocaram na cabeça dele, q. se ele se matasse ele reencontraria a sua mãe! (...)"... Pode? Pessoas que não entendem a lógica da moda, da arte em geral, usam seus preceitos religiosos para condenar um trabalho de que nem têm ideia do que se trata... julgam o trabalho pela causa da morte... Juro que eu me revoltei... ainda me revolto com isso...
A estupidez humana não tem limites... e nem digo isso para ofender religião alguma (que isso fique claro)... mas sempre quando alguém morre por suicídio (ou de outra causa tabu) chega uma dúzia de urubus para condenar e desmerecer o trabalho de uma vida inteira... inveja? Intolerância? Falta de noção? Todos estes parecem ter total conhecimento sobre a vida do indivíduo-McQueen, mais que o próprio talvez... todos estes julgam o mundo pelo próprio umbigo, sem penetrar jamais nos seus próprios lados mais escuros, o mais sombrio da natureza humana (e que é inerente a todos nós...)
McQueen buscava inspiração no não-óbvio e fazer arte é isso: sair da zona de conforto, colocar o dedo nas próprias feridas, buscar beleza no que muitos consideram podridão, doença... no "lado negro da força". E isso pode doer... e isso pode matar... mais que o suicídio...
Me identifico muito com este movimento, com esta busca pelo não-óbvio - como todos que acompanham este blog já sabem... quando buscamos inspiração nos nossos fragmentos mais profundos e mais sombrios, não nos tornamos cruéis ou "demoníacos" por isso...
Chego à conclusão de que ainda vivemos num mundo anos-luz da compreensão de si e do alheio... num mundo de gente vazia e cega que se acha melhor do que todos aqueles que são diferentes de si, mas que, mesmo assim, acha que ganhará um passe-livre para o reino dos céus...
Não cabe a ninguém julgar... a beleza existe em dimensões múltiplas, como tudo no mundo...
**para acessar o site LP - MSN Moda e seus comentários:
a DOR nunca é só poética...
é claridão consciente...
descontínua
como a neve
é finita! acredite!
de uma forma ou outra...
só existe entre sua causa e
seu desfecho...
mas neste prazo de validade,
sem data específica
há um território quase intocado,
possível de experimentações todas...
cheio de imagens instigantes
e sensações estranhas...
a dor nunca é o que aparenta...
é, todavia, mais que exclusivamente dor...
como tudo no mundo
entalhei no medo - sementes - para que desta água parada nasça a mais linda luz soturna, um misto, de ímpeto criativo coragem lascívia abismo e contentamento...