terça-feira, 30 de março de 2010

A Melancolia do Escaravelho (fragmentos)


Tenho comigo este comprometimento: seguir o que meus pés desejam seguir e ser muitas e contraditória - pois é na contradição que me entendo, que me aninho do mundo. E isso que me despe lentamente possui mãos ligeiras e ágeis de urgência, num impulso libertador e famindo, que reivindica para si tudo o que há entre as muitas camadas que guardo, gritos que suprimi e sussurros passadinos, devaneios e pontos de encontro do meu ser e do devir.

Isso que me consome ferozmente, cada parte de mim, é o mesmo que à noite me toma, me agarra entre palavras, num mar de letras sentidas, de pensamentos ainda quentes, nos lençóis já quedos... isso: o bálsamo que me envenena ainda mais de mim mesma é também a minha via-expressa, meu canal de entendimento. Poderia eu ter uma fuga, como qualquer pessoa, mas teimo em problematizar as coisas, e às vezes corto-me sem piedade.

(...)

Quando adentro teu apartamento, esta muralha cinzenta que escolheu para fazer tua morada, não estou perdida ou confusa. Houve noites em que me perdi em corpos e lugares que hoje sinto falta - não dos lugares, muito menos dos corpos, mas dessas possibilidades que fui e que hoje possui um valor que não consigo mais pagar para me ter de volta. E por isso, digo: no teu território frio encontro o aconchego trépido que emana de si e de teus objetos polidos e presentes, assim como as palavras e os pensamentos audaciosos detrás destes óculos tímidos e de tudo o que é em si timidez e perturbação.

Leio, do outro lado do quarto, os sobressaltos que tua respiração dá. Leio tudo o que emoldura tua imagem:

"ela, a estranha, ali, um momento de dor, muitas noites de dor, na solitude de uma cama que era só minha... ela, aqui, na minha dor, com a sua dor, o que quer? Ela dói em mim com esse olhar incisivo... dor estrangeira... ela é só cama e só é dor, alva representação de um corpo bem posto nos meus lençóis... ela é corpo e dor, é olhar temerário..."

(...)

As mãos me percebem; na face perseguem curvas que seguem pelo corpo. As mãos pecebem o vazio todo repleto de coisas. Elas não temem o óbvio ou a ruína. Os olhos veem coisas que nunca fui e injustamente acabei me tornando, a minha insônia crônica e os rasgos e feridas que guardo em mim, longe da superfície. Sabe disso tudo, pois consegue se ler em mim - somos próximos, somos noturnais.

O vento da madrugada faz meu corpo tremer, afagado por mãos que seguem a enlear-se em meus cabelos, pendendo minha cabeça para trás, esquentando-me a alma em firmeza, como num gole de consciência. A boca quase me rasga a carne - sentida fugacidade que tenta abrir-me de uma forma ou de outra, para ter para si mais diferenciações, variações de mim.

Eu, entre mãos que parecem me penetrar os músculos das pernas pendentes no limiar curvelíneo do corpo oposto, sou a dententora do excesso de vontade - da minha vontade, da outra vontade - dos limites e da falta deles. Retenho no meu paladar o tanino da tua língua, do vinho sentido, dos minutos de solidão anteriores a minha presença, antes do açoite púrpura das tuas digitais na minha pele sem palavras (...).

(quem sabe... continuará...)

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"A paixão deixa, depois de passar, um pesar obscuro de si própria e nos que lança ainda, enquanto desaparece, um olhar sedutor. É preciso que haja uma espécie de prazer em ser açoitado por ela. Os sentimentos medíocres parecem vazios em comparação; ao que parece, se ama ainda mais o desprazer violento que o prazer chato". (Nietzsche, Humano Demasiado Humano, p. 287, afor. 606)

5 comentários:

  1. A beleza carrega sempre um peso que transborda em sonhos, um inusitado caminhar que compreende a revolta, que eleva a ansiedade e nos deixa mudos... Por vezes, somente em hipóteses se pode rever a procura que enfeitiça... Em outras, ainda estamos presos ao passado e tudo nos parece incerto para podermos relazar...
    Gostei imenso do teu texto:)*
    beijos

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  2. Obrigada por aproximar palavras, Jorge!

    Entre prisões que escolhemos, o passado e a dor há ainda canais que irrigam a vida de outras sensações...

    Bjocas

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  3. Daisy Querida,

    Que belíssimo texto!

    Só te poderei dedicar um pequeno poema.

    "...num mar de letras sentidas..."

    Soltam-se as letras
    Voam os sentimentos
    Escrevem os pensamentos

    E com o vento,
    Apenas sentes!
    E com o vento,
    Apenas ouves!
    E com o vento,
    As letras escreves
    Com sentimento!

    Queres escrever
    Os pensamentos fogem
    Chegas a uma certeza:
    Escrever apenas
    Quando o teu coração
    Fala baixinho ao teu ouvido!

    Continua com o belíssimo texto.

    Be:)os,
    LUmeNA

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  4. Querida Daisy, muita identificação com o seu texto!
    Amei!
    Bjos

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  5. Palavras sentidas, Lumena! A poesia é este montante que descobrimos por instinto.

    Obrigada por comentar!

    ____________

    Me

    Que bom que toquei sua alma com palavras... obrigada pela visita! É muito importante para mim.

    Bjs

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