quinta-feira, 11 de março de 2010

Saturnina 2


Saturnina
2. Unidade

Minha pele quase se rompeu quando pelo pulso me segurou, levando-me em direção ao centro do salão. Um movimento súbito. Não sabia o motivo de sua escolha, mas me arrancou da exatidão, da suposta invisibilidade que achava haver alcançado, para o ponto mais evidente da noite. Mas não me opus – mesmo que isso adiantasse para impedi-lo.
Olhou-me com olhos de imensidão, de cólera, de dor. Com um dos braços passados à minha cintura, juntou-me a seu corpo, em asfixia. A outra mão, a minha segurava, indicando a direção de suas intenções. A pele quase enrugada – não do tempo, mas da angústia que a face tentava esconder – se fechou numa armadura, uma carapaça quase intransponível.
Não havia lógica aparente nesta cena: eu e um quase desconhecido a iniciar uma valsa festiva, sem festa para ambos... não concebia seus motivos, nem sua escolha. Mesmo assim, deixava-lhe ser o que anseava ser, buscar o que anseava ter. Logo, a minha entrega seria uma resolução ou uma condenação - tanto fazia, pois me bastava em curiosidade.
A música não nos invade da mesma forma quando apostos estamos. Há estímulos sonoros que envolvem os sentidos, mas não sobressaem à atenção fixada no corpo oposto em mistério – uma ameaça ou uma redenção?
Não sentia mais o vestido ou as anáguas, não sentia os pés ao chão. Apenas a luz dos candelabros que parecia formar um único cinturão energético nos orbitando. Havia olhos em estranhamento que nos seguiam, dando-me uma sensação de vitória e de desdém sobre estes.
O ar quase não me chegava aos pulmões devido ao ímpeto das mãos alheias em me juntar em si, e, em movimentos sinuosos e espaçados de cada volta, quisesse me consumir através da pele, espremer em seus braços para obter a essência daquilo que sou. Os olhos, numa caçada hipnótica de querer sobressair e decifrar, de falar e querer ainda falar, eloquência sem palavras, e todas as palavras de uma vez, não sucumbem ou recuam.
A cabeça vaga em voltas longas e não quer cair nas vertigens do ar rarefeito. E toda angústia que regularmente me preenche de outras sensações – meu caminho pessoal para a consumação do que eu mesma sou - alcança um estado de um alerta pouco evidente - me faz ativa, mas não me pesa, apenas acompanha meu corpo e se faz presente.
E quando acho que estou a desfalecer, a mão que jaz sobre meu dorso me ampara mais uma vez, trazendo-me à realidade. A música quente e cativante termina num rompante e, no olhar igualmente assustador, o homem se abstrai de mim, como se de mim descolasse um pedaço a mais da alma já fragmentada, levando consigo. Aplausos. Sem palavras. Larga-me inerte ao fim desta sequência de voltas, com o mesmo brilho colérico que me fulmina a retina e os pensamentos  – e se esvai, sem nada dizer, entre a sebe, a bruma e o luar outonal. Eu, confluência de imagens e sensações, caio em mim novamente, no mundo inaparente que carrego, num alvoroço para tentar compreender a unidade que consigo me transformei por alguns minutos – na guerra que travamos por nós mesmos.

6 comentários:

  1. Fantasiaste com um fantasma ou foste talvez a fantasia de um outro ser... O ardor desses momentos a dois conquistaram a dissolução da realidade e enfeitiçaram as tuas palavras que Eros se orgulharia...
    Gostei do texto, nina:)*
    bjs :)

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  2. Fumaça, querido...
    (sempre bom vê-lo)

    a luta dói, e isso nem sempre é ruim... na maioria das vezes não é...
    Continuarei! Eu e a minha "saturnina"

    __________________

    Jorge, mais que estimado!

    Oh, que bom que gostou! A dança que não faz sentido a priori é a que guarda uma profusão de novos valores e sabores...

    Beijocas, querido!
    :)*

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  3. A carícia que a brisa concede é o arrepio do sorrir, a inocência que bebe da loucura, esta prestes a sentir a luz e a sua formosura, porque entre nós habitam ninfas, guias cujo delírio é o poema seduzir!!!
    Ah! De que serve viver senão para dançar sabendo que tal dança guarda uma profusão de novos valores e sabores? ;)
    É sempre um prazer "devorar" os teus textos, dedicada escriba:)))*
    bjs:)***

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  4. Beber da loucura é justamente esta dança - uma loucura que nos arde naquilo que seduz e que é por nós seduzido, nos gostos profundos do estranhamento... por que estranhar é sempre sintoma de algo que precisa ser vivido...

    Devore-me o quanto for capaz, Jorge... ou o quanto estas palavras lhe forem úteis...

    Beijo na testa!
    ;-)

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  5. Errata: *(... ) porque

    (odeio não revisar minhas próprias palavras... ¬¬)

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