segunda-feira, 30 de agosto de 2010

(pedaço de alguma coisa sendo escrita)



(Michel Dweck - Mermaid 12)


(...) Nos olhos quase desatentos transfigura um mundo interno – pensamentos quentes e voláteis como a brisa que penetra o ambiente. Um pouco de alma, de sua própria alma transposta, carregam os pedaços silentes a serem picados entre os dedos seguros. Pedaços eternos que ela leva aos lábios com a calma e a delicadeza de um ritual, onde o corpo é a nave principal de um templo sagrado e o suco que lhe brota por entre os dentes profana e conjura ao mesmo tempo cada fibra de si –  declinam-se as pálpebras para baixo, num ato de reverência.

Quando a espera já se faz carrasca, a fome alheia lhe cerca, infiltrando as mãos por entre o vestido e a pele fresca, fazendo-a estremecer enquanto a ponta da faca se aprofunda no dedo fino, trazendo consigo uma gota de dor, de vida, de pressa, de pulso...

(...) 

O corpo sobre a mesa de madeira tem o gosto da solidão e da saudade da infância; de fruta e de chuva se fazem os lábios; do mar salgado, as lágrimas que se projetam posteriores ao pequeno corte. A boca é gelada e quente ao mesmo tempo - frio febril das flores almiscaradas que se abrem ao cair da noite no corpo, que se rompe quando os dedos traduzem anseios, içando roupas e falsos pudores. Nos seios, a suavidade cítrica das laranjas, doces e macias, tão traiçoeira como a sensação de quem olha para o céu claro em dia limpo e se perde. (...)

4 comentários:

  1. ...frio febril das flores almiscaradas...

    Uauu! queria ter escrito isso.

    Gosto dessas sensações imaginadas nessas letras imagéticas e sinestésicas. Belo!

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  2. Imagens, sensações, profundidades... lindo demais...

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  3. Ler é um salto no escuro aprofundamento das imagens alheias, e também nossas...

    bjs a todos

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  4. Estava a ler as teias do teu texto e fez-me imaginar a Alma como um cálice em que se devora a eternidade

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