terça-feira, 30 de março de 2010

A Melancolia do Escaravelho (fragmentos)


Tenho comigo este comprometimento: seguir o que meus pés desejam seguir e ser muitas e contraditória - pois é na contradição que me entendo, que me aninho do mundo. E isso que me despe lentamente possui mãos ligeiras e ágeis de urgência, num impulso libertador e famindo, que reivindica para si tudo o que há entre as muitas camadas que guardo, gritos que suprimi e sussurros passadinos, devaneios e pontos de encontro do meu ser e do devir.

Isso que me consome ferozmente, cada parte de mim, é o mesmo que à noite me toma, me agarra entre palavras, num mar de letras sentidas, de pensamentos ainda quentes, nos lençóis já quedos... isso: o bálsamo que me envenena ainda mais de mim mesma é também a minha via-expressa, meu canal de entendimento. Poderia eu ter uma fuga, como qualquer pessoa, mas teimo em problematizar as coisas, e às vezes corto-me sem piedade.

(...)

Quando adentro teu apartamento, esta muralha cinzenta que escolheu para fazer tua morada, não estou perdida ou confusa. Houve noites em que me perdi em corpos e lugares que hoje sinto falta - não dos lugares, muito menos dos corpos, mas dessas possibilidades que fui e que hoje possui um valor que não consigo mais pagar para me ter de volta. E por isso, digo: no teu território frio encontro o aconchego trépido que emana de si e de teus objetos polidos e presentes, assim como as palavras e os pensamentos audaciosos detrás destes óculos tímidos e de tudo o que é em si timidez e perturbação.

Leio, do outro lado do quarto, os sobressaltos que tua respiração dá. Leio tudo o que emoldura tua imagem:

"ela, a estranha, ali, um momento de dor, muitas noites de dor, na solitude de uma cama que era só minha... ela, aqui, na minha dor, com a sua dor, o que quer? Ela dói em mim com esse olhar incisivo... dor estrangeira... ela é só cama e só é dor, alva representação de um corpo bem posto nos meus lençóis... ela é corpo e dor, é olhar temerário..."

(...)

As mãos me percebem; na face perseguem curvas que seguem pelo corpo. As mãos pecebem o vazio todo repleto de coisas. Elas não temem o óbvio ou a ruína. Os olhos veem coisas que nunca fui e injustamente acabei me tornando, a minha insônia crônica e os rasgos e feridas que guardo em mim, longe da superfície. Sabe disso tudo, pois consegue se ler em mim - somos próximos, somos noturnais.

O vento da madrugada faz meu corpo tremer, afagado por mãos que seguem a enlear-se em meus cabelos, pendendo minha cabeça para trás, esquentando-me a alma em firmeza, como num gole de consciência. A boca quase me rasga a carne - sentida fugacidade que tenta abrir-me de uma forma ou de outra, para ter para si mais diferenciações, variações de mim.

Eu, entre mãos que parecem me penetrar os músculos das pernas pendentes no limiar curvelíneo do corpo oposto, sou a dententora do excesso de vontade - da minha vontade, da outra vontade - dos limites e da falta deles. Retenho no meu paladar o tanino da tua língua, do vinho sentido, dos minutos de solidão anteriores a minha presença, antes do açoite púrpura das tuas digitais na minha pele sem palavras (...).

(quem sabe... continuará...)

____________________________

"A paixão deixa, depois de passar, um pesar obscuro de si própria e nos que lança ainda, enquanto desaparece, um olhar sedutor. É preciso que haja uma espécie de prazer em ser açoitado por ela. Os sentimentos medíocres parecem vazios em comparação; ao que parece, se ama ainda mais o desprazer violento que o prazer chato". (Nietzsche, Humano Demasiado Humano, p. 287, afor. 606)

segunda-feira, 29 de março de 2010

entre águas (fragmentos)

 *Helena Bach

(...) mas o que podemos fazer se o desejo escapa por entre os dedos e pinga no chão mundano e encardido por onde pisamos, onde desenhamos nosso próprio caminho? O que eram imagens largas e bem delineada tornam-se rascunhos de uma peça que nunca vingará, pois jamais fará sentido algum (...) Engraçado pensar em você desta forma, como um devaneio ou uma promessa de algo que não durou e se esvaiu, de alguma coisa que ainda vibra baixinho na surpefície de mim, mas que não possui força para me achar (...) vivo nessa descoberta de novos encaixes, de segredos de alguém enterrados na lama turva, de sussurros que ecoam nos quatro cantos do mundo e que ecoam em mim também... mais uma busca, mais uma partida, um eu recomposto de novas cinzentudes e novas nuvens a transbordar não sei onde ao certo... um novo começo de algo ainda indecifrável (...)

domingo, 28 de março de 2010

lasca de pensamento


(...) os dias encontram em meu corpo um obstáculo, como se o vento, assim como o tempo, tivessem necessariamente que se esquivar de mim, para continuar com sua rota imprevisível... sou um obstáculo imposto (...)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Participação

Só para registrar, mais um pedaço deste blog vingou em outros cantos...

Participo com "No Momento Mais Agudo de Si" da 64a Antologia dos Poetas Brasileiros Contemporâneos, pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores.

É sempre bom quando atingimos outros públicos, quando lançamos nossos pedaços para serem devorados por outros olhos...

Mas a mola propulsora de tudo o que escrevo é este espaço, e agradeço a todos aqueles que passam uns minutinhos aqui tentando entender as peças que me compõem...

Obrigada!

Para conferir: http://www.camarabrasileira.com/pc64.htm

terça-feira, 23 de março de 2010

ATENÇÃO

 (Imagem: Giulia Zingali)

Escuta!

São os versos que gotejam lá fora
Longe da inércia dos corpos
Pingos na imensidão além-nós
Cadenciam o retrato vivo
Que somos, agora, a latejar...

Escuta!

É o plenilúnio que se descola do céu
Para orvalhar os nossos cabelos...
Batismo burlesco da carne que arde
E tudo o que era noite, continua sendo
No contraponto de sua própria negação...

Escuta! Amor! Escuta!

São as palavras que ronronam
querendo amplificar-se dos versos
no estalar dos ossos, na lambida do vento
que ainda ecoam nas paredes lisas
enquanto olhas o nada quando olhas para mim...

Escuta!
Antes que te perca para os sonhos... uma vez ainda, escuta!

(...)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Ideias



(...)
Como uma desgraça
Me manténs no peito
Livre da luz do mundo
Só para ti...
 - delícia platônica -
Que dissolve na língua oposta
Nos mil mordiscos que dás...
E afaga-me, mais uma vez, nas lágrimas quentes
Numa tarde de Sol enleada...
E quando quero estar aqui,
A descansar de mim no teu peito,
Tão logo agarras a tempestade que sou
E me transformo no teu momento
escapando do meu propósito
(e sendo, ainda sim, um propósito)
Ignorando minhas outras saliências
Que gritam para viver
Nem que seja em linhas tortas
Jamais lidas...
E desabo a face em chão de pedras,
Deslizo nos teus dedos
Pois permito que tu cruzes
Com as ideias mais exatas que tenho
Para que algo em ti floresça
E em mim não...
Leve consigo este verbo maldito
Que todos querem para si
E registre com meu sangue
Uma nova verdade
Uma nova virtude
Nas palavras distantes
Entre um gemido estrangeiro
E o estalar de um beijo
Em promessa apenas...

domingo, 21 de março de 2010

Memorial de Ausência


(...)

sou destes espíritos incautos
na entrega que componho
como uma partitura que se dissolve
no olhar de quem a interpreta
no olho de quem penetra
sem bocejos de satisfação
num coração sem compasso
de quem vive uma obsessão
descoberta do outro em si
visões voláteis na ausência
de quem sangra de saudade
cartografando o corpo em memorial
na vontade profana de deslizar
os dedos em cordas de silêncio
na fagulha da pele que flameja
e exige uma vez mais
a marca de quem arranca desejos...
numa poça púrpura da minha claridade...
abstraio gotas de anti-matéria
entre as mãos cuidadosas
de maciez que te fere
pela falta posterior
daquilo que não encontras
em quaisquer curvas
que não sentes em qualquer ofegar
uma impossível palavra
que jamais te exorcizará
de ti mesmo...


---> Para ouvir em MP3 (aviso que minha voz não é grande coisa... ssrsrsr): http://portalliteral.terra.com.br/banco/audio/memorial-de-ausencia 

Cordas


as horas correm
no corpo largado
em minha cama
olhos que me olham
no resto que sobrou
quem sabe, o que realmente sou...
romperam-se já as cordas
que te prende ao meu consumo
Vá nesta hora que te embala!
sem tentar decifrar o que há ainda
carne além
- além do fruto ácido, 
superficialidade que já te dei -
à parede infinita
que serpenteia meus limites...
das minhas cabais evidências...
e grite ao mundo, se quiseres,
que coleciono corpos des-cobertos
em função de sofrimentos renegados
guardados só em mim,
pois hoje sou soturna
nesta sombra corrente
quando há mais céu que lua...

quarta-feira, 17 de março de 2010

VOYEUR



Se aos dias buscam os olhos
Tua imagem preferida
Um olhar que te arremata
Te condena e aproxima
Daquilo que mais quer
Na delícia não percebida...


Pés salientes na suspensão
Daquilo que sou e exibo
Caminho nos teus pensamentos
Nos olhos vorazes sentidos
Devorando-me à distância
No calar do teu silêncio...


Num “momento-quase”, percebo
E roço-te os dedos à face
No sabor da correnteza
Uma permissão concedida
Um consentimento rasgado
Que te mata aos poucos, até mim...


A língua ferina é sempre chicote
Em versos, teus desejos transpostos
O que teus olhos furtam em pecado
Ao meu saber, uma reverência leve
Entre as pernas entreabertas
O desejo evidenciado do não-visto...

segunda-feira, 15 de março de 2010

Encaixe (fragmento)

*Anke Merzbach
(...)

Todo corpo arde, não importa a forma que seja... se por ventura ele quer se evidenciar, assim será, independente de sua opinião ou de seus pudores. Mesmo nessa noite fria, mesmo na mais intransponível revolta, o corpo sempre arde, pois o fogo é atemporal.

Mesmo assim, não estava a falar disso. Interessa-me, mais que o próprio fogo, o motivo que o faz queimar por mim. Um ser que queima por mim é um objeto intrigante e delicioso de se pensar. E mesmo assim, ainda há partes quentes impensáveis, cuja essência só se prova, se por acaso se permitir provar.

A prova do teu fogo seria ainda mais a minha condenação do que a sua. Provar-lhe só porque me ofereces a ti, sem laços, sem dramas. Para tentar sentir o que sentes, a dimensão do que posso ser em si (...) - uma curiosidade que me levaria a cair na boca do mundo, mas que sucumbiria de olhos fechados ao gosto da experiência (...).

(...)

E não é um desejo egoísta – provar o que sou naquilo que te atrai (...) é encaixe! É um compartilhar de mundos e de nossas diferentes faces, é buscar nesse fogo toda a possibilidade que as horas permitem. Quero-te pelo que te causo, mas quero-te pelo mistério que há em si. Pois mesmo que te conheças, há sempre este mistério que me faz queimar... 

*rasgado da minha imaginação ao som de "Dead Can Dance -  De Profundis - out of the Depths Sorrow".

Sobre o desejo e o entendimento




O fogo que me ilumina o espírito
Que me define
Que me condena
Quero que me transcenda
Queime e rasgue o que sou
Transforme o novo dia
Nas cinzas de algo vivido
Que destrua esta estranheza
De tudo o que represento
E que esta representação
seja vaga diante do resto
que sou...
Que meus antigos motivos
Sejam as ruínas que sustentam
O novo pensamento
Que me transborda
E que não és capaz de sentir
Mas a ti é desejoso viver...

*
Sou a centelha que dá a luz ao meu próprio escuro... sou a minha perfeita escuridão, que enriquece, no meu âmago, esta luz que me acende...

sábado, 13 de março de 2010

Saturnina


*Imagem: Caspar David

3. Punctum Saliens*
(...)
O interesse desperto, de início, era pela estática dos corpos. Os lábios mal se encostavam – entre o desejo e o desejado, havia ainda um entreolhar que ditava os segundos de aguardo.  Podia ter sido um beijo roubado, fulminante, mas era um fato esperado por ambos.
Esta mania de a espremer contra si, sem dar-se conta do mal que lhe causava (ou do prazer), do quanto doía em seu corpo e em sua alma ficar sem ar – roubando-lhe os momentos em que havia pensamentos a serem concluído ou tirando-lhe a atenção – começava a ganhar um novo ritmo, uma intensidade diminuta, afrouxando a força dos braços, não como um cuidado para com o corpo frágil que faceava, mas num movimento de entrega de si num território que ia explorando aos poucos, ainda com ressalvas.
(...)
Ela experimentava lábios de fina espessura, firmes, encarnados e frios, que assim como os olhos, pareciam guardar, todavia, mais de si, um enigma que aos poucos ela dissolvia, em pequenos e tímidos movimentos e uma respiração comedida. Ele experimentava lábios túmidos numa opacidade brilhante, como fina seda maciça, que diante de si exibia uma afronta ao seu próprio jeito de conduzir as coisas.
A aproximação com este homem a fazia, assim como o contato de sua língua, enrondilhar círculos de pensamentos, numa embriaguez confortável, estendida e plena.  Via o amor mais como uma força, uma carga energética do que uma seleta de sentimentos. Não que esperasse amor da tradução deste silêncio que jazia entre seu corpo e o do outro. Vivia mais no rompante desta força legítima do que nas suposições vagas e inocentes tão comumente usadas para defini-lo.
Os lábios parecem nunca se bastarem – exigem tudo o que for tangível no corpo: mãos, face, quadris, cabelos, pescoço e tudo o que for pele. E as palavras que parecem manter nosso domínio sobre o mundo, suprimem-se e vagam apenas na cabeça dela, porque ele é impulso, propulsão, mais que razão, é cuidado e instinto.
E como é força que tem a necessidade de ser mais força, rompe ainda mais o comportamento bem-visto, esquivando-se do comedimento e a quase suspendendo contra a parede, como se o momento não pudesse deixar escapar – porque assim que a deixasse sair de seu domínio, haveria pensamentos e valores, haveria a si próprio para encarar, haveria tradução e representação disso tudo.  (...)

*Ponto Saliente (latim).

CÓLERA


 Anke Mertzbach (só para atiçar meu pânico por estes bichos)

Tem momentos em que sucumbo
Na fonte do grito, a raiva transborda
Vibra para fora tudo o que cresce
Em mim, mil coisas, diante do mundo

Nos versos desalinhados
Sombras apenas do que sinto
No amargo da náusea
os sentidos não-alcançados

Me enoja toda esta farsa
O falso valor não mantenho
Rompo com o que és a meu favor
E tudo que sou, numa palavra esparsa

Nada pode ser plausível...
O Nada é plausível...

Planos Baixos (fragmentos)

 *imagem de referência desconhecida
(...)

As pessoas hoje são planificadas. Provavelmente sempre foram. Tudo o que fazem é fugir ao padrão indo de encontro ao mesmo. E fora deste estrato reside o supostamente decadente, marginal. E mesmo o marginal parece ser planificado.

Planificar é renegar-se. É muito menos problemático fugir de si do que entender o mundo interno que nos faz amplitude. Porque temos uma sonoridade interna, uma vibração que mesmo suprimida nos reivindica a cada instante da massificação. E mesmo assim, vive-se e julga-se o que há no outro e que muitas vezes espelha o que somos ou o que no íntimo almejamos ser.

O ser humano é este território sem trilhas ou margens ainda definidas. Seus sentidos lhe enganam e mesmo desta forma são criadores de novos formatos, pequenos focos, pequenos entalhes distribuídos num sortimento de lapidações. Somos mais do que a possibilidade de um sentido para esta construção, pois nos reinventamos constantemente numa dança que nos expõem em fraquezas, vicissitudes, vigor ou coisa alguma definida. Por isso muitos de nós preferem a planificação: a exposição de que somos sem couraças agride tudo o que há de palpável em nós e geralmente nos condena moralmente a nós mesmo – numa auto-flagelação, mais que uma agressão coletiva. Expor o que não entendemos a nosso respeito dói, e não há conclusões certeiras, e em suma, é também caminho.

(...)

Gosto de me extenuar neste gosto do que sou. No gosto, não tanto no entendimento.(...)

quinta-feira, 11 de março de 2010

Saturnina 2


Saturnina
2. Unidade

Minha pele quase se rompeu quando pelo pulso me segurou, levando-me em direção ao centro do salão. Um movimento súbito. Não sabia o motivo de sua escolha, mas me arrancou da exatidão, da suposta invisibilidade que achava haver alcançado, para o ponto mais evidente da noite. Mas não me opus – mesmo que isso adiantasse para impedi-lo.
Olhou-me com olhos de imensidão, de cólera, de dor. Com um dos braços passados à minha cintura, juntou-me a seu corpo, em asfixia. A outra mão, a minha segurava, indicando a direção de suas intenções. A pele quase enrugada – não do tempo, mas da angústia que a face tentava esconder – se fechou numa armadura, uma carapaça quase intransponível.
Não havia lógica aparente nesta cena: eu e um quase desconhecido a iniciar uma valsa festiva, sem festa para ambos... não concebia seus motivos, nem sua escolha. Mesmo assim, deixava-lhe ser o que anseava ser, buscar o que anseava ter. Logo, a minha entrega seria uma resolução ou uma condenação - tanto fazia, pois me bastava em curiosidade.
A música não nos invade da mesma forma quando apostos estamos. Há estímulos sonoros que envolvem os sentidos, mas não sobressaem à atenção fixada no corpo oposto em mistério – uma ameaça ou uma redenção?
Não sentia mais o vestido ou as anáguas, não sentia os pés ao chão. Apenas a luz dos candelabros que parecia formar um único cinturão energético nos orbitando. Havia olhos em estranhamento que nos seguiam, dando-me uma sensação de vitória e de desdém sobre estes.
O ar quase não me chegava aos pulmões devido ao ímpeto das mãos alheias em me juntar em si, e, em movimentos sinuosos e espaçados de cada volta, quisesse me consumir através da pele, espremer em seus braços para obter a essência daquilo que sou. Os olhos, numa caçada hipnótica de querer sobressair e decifrar, de falar e querer ainda falar, eloquência sem palavras, e todas as palavras de uma vez, não sucumbem ou recuam.
A cabeça vaga em voltas longas e não quer cair nas vertigens do ar rarefeito. E toda angústia que regularmente me preenche de outras sensações – meu caminho pessoal para a consumação do que eu mesma sou - alcança um estado de um alerta pouco evidente - me faz ativa, mas não me pesa, apenas acompanha meu corpo e se faz presente.
E quando acho que estou a desfalecer, a mão que jaz sobre meu dorso me ampara mais uma vez, trazendo-me à realidade. A música quente e cativante termina num rompante e, no olhar igualmente assustador, o homem se abstrai de mim, como se de mim descolasse um pedaço a mais da alma já fragmentada, levando consigo. Aplausos. Sem palavras. Larga-me inerte ao fim desta sequência de voltas, com o mesmo brilho colérico que me fulmina a retina e os pensamentos  – e se esvai, sem nada dizer, entre a sebe, a bruma e o luar outonal. Eu, confluência de imagens e sensações, caio em mim novamente, no mundo inaparente que carrego, num alvoroço para tentar compreender a unidade que consigo me transformei por alguns minutos – na guerra que travamos por nós mesmos.

segunda-feira, 8 de março de 2010

fragmentos de definição (nada definido!)



(...) não sou uma pedra, uma porta ou um pedaço de carne. E teimo em facear tudo aquilo que dizima os bons costumes. Ou me guardo de mim nos contatos insanos, noturnais sensações na noite escondidos, ou me guardo do mundo, sem conseguir me despir da noite. Porque esta está em mim, nasceu comigo... sou isso que sou, noite. Notívaga. O resto é adereço.
(...)
Toque-me apenas com mãos firmes, jamais bruscas. Pois por mais que a singeleza seja uma marca de meus gestos, posso atrever-me a provar aquilo que de mais escuro guardas – e te farei provar também. E não lamentarei se por esta razão te fizer sangrar, mesmo que sangre junto consigo.
(...)
Como o chá de jasmim que a boca inteira consome, consumo com a boca (e com olhos) os mais ligeiros gostos, densidade encarnada: palavras. Consumo palavras de todos os tipos – delicio-me com a arte que deflora a folha branca – aquela, que me encarava há segundos atrás. Com essa coisa bandida que nos rouba o sossego – palavra! -  danço entre os versos que repudias: “Sem métrica”, “sem ritmo”, “sem sentido” – “não pode ser isso poesia”! - Oh, petulância piogênica! Meus versos são livres e sem controle, vividos e sentidos tal como se vive uma obsessão! Os teus, prosódia insípida, nada dizem.
Cansei de ser prosaica (no sentido negativo da coisa), e nunca fui! Cansei de ter linhas sinuosas e temerárias, e nunca tive! Falo a ti sem entrelinhas, e somente nelas. Estes lampejos rápidos das coisas que sinto, registro aqui para que um dia tudo isso viva em alguém – e sou uma eterna condenada pela interpretação alheia – ou o mau uso dela mesma. Mesmo assim, acho valer a pena perturbar teu dia com fragmentos (pedaços) disso que sou:

(...)
ferve teu sangue
na boca que arde
te mata em sentidos
a pele e a mente
caem longe de ti
e te foge a palavra
(esta que roubo)
te condena a firmeza
e nada mais és,
exaustão entregue
sem mais máscaras (...)
(...) 

Não tenho mais esta preocupação de ser aceita aqui (ou em qualquer lugar). Quero apenas ser a experiência que teus olhos guardam, mesmo que isso que sou (palavras e mais palavras – expurgadas!), não te leve a lugar nenhum. Só existem estes minutos passantes, perdidos ou não – com o resto, nada tenho a ver – é coisa da tua cabeça...

sábado, 6 de março de 2010

durante a escuridão...

Acende a alma
frescor abrasivo
na dança sem som,
sem voz (...)
das melífluas honrarias
que quero (só) para mim...
Aparo tua dor estreme
e estás em mim agora
sem toques que não sejam palavras
jogadas para o vento levar
tonantes nas horas ausentes...
Não é ilusão, amor, sentir
esta dor, no meu peito, insolente
de ver que não posso tangir
o rugido que teu corpo guarda
na aurora que já vai surgir...
Quero-te bem,
pois os olhos, mais que água,
vertem sonhos e infinitudes,
prazeres secretos
desejos revelados
vontades!

sexta-feira, 5 de março de 2010

nova aurora...


Não há promessas
encho-me do ar que te faço perder, quando minhas mãos por teu peito rastejam em busca de algo que ainda de mim escondes. O beijo almiscarado me faz vencer sobre teus receios, numa rendição desejada de libertar-se dos dias que em agonia não findam. Vejo segurança refletida em teus olhos. Livro-te do gosto de outra boca e tudo o que sou, assumo e te entrego... em palavras, em visões, em sons... assim como desejares, assim como eu sou, numa migalha de tempo. Sem amarras...

Não há sonho
criamos um universo paralelo em que as palavras nutrem os nossos sentidos com coisas selvagens e corteses... um pensar em ecos alheios sobre a harmonia compartilhada à distância. O encanto não tarda a despejar-se sobre nós, almas castigadas, momentos de deleite e leveza, pequenos fragmentos de dia. Não é sonho o que se permite viver. E pode-se viver a mais deliciosa demência se os pés estiverem fincados no chão.

Não há espera
Vago por entre si buscando saber onde mora aquilo que gostas e o que temes, e me deparo com palavras que terás que me decifrar...
 ... mas há espera... daquilo que quer ser dito; da expectativa em saber o que se passa na alma seguinte – um sentir as coisas como se sente, a visão na mesma perspectiva. Uma espera curiosa, jamais um martírio.

Não há cobranças
 nunca haverá! E as tolas brincadeiras se esvaem em risos, nada mais. Cobranças são mortalhas para vivos! Descobertas nos expandem...

Não há limites
 diga-me tudo o que tua alma grita, pois a minha rugirá em troca – em segurança.

quarta-feira, 3 de março de 2010

aos profetas parasitas

 *Gustave Doré
Em meus caminhos longínquos
Estrada arenosa
De que não fujo
E que me agrada andar,
Sempre me deparo com arautos
Profetas de coisa alguma
Que nada podem entendem
Na cegueira de sua ruína...
Me condenam
Me excomungam
Me ofertam cura
Naquilo que não entendem
Mas que supõem fazer de si
Criaturas mais distintas
Que eu...
Abdicam da própria vontade
Em favor de uma entidade
Para que, em culpa eterna
Transferem-lhe o cabresto
De suas existências desnecessárias...
Me desmancho em gargalhas...
No esquivo dessas sombras
Que entre pedras e palavras tortas
Açoites morais
Tentam-me o extermínio
Da “tão nefasta” Razão...

(sua natureza está longe de ser a minha...)

sobre a cura e a quarentena

*Parke Harrison
(palavras não-direcionadas)

se estas nuvens negras
interpelam a ti
num canto flébil
sobre inflamadas cicatrizes,
ousa encravar na folha virgem
os topores que jazem no seu âmago
Mais profundos e ardentes
Mesmo que dilacere ainda
a alma de constante inquietação

Encara o gosto destes dias
na boca ainda amarga
que tange os teus pensamentos
nesta tristeza do nada
deixa-te levar por este mar verde
de montanhas e de tempo
que o alento está em ti
que a quarentena é liberdade
insustentável segurança

terça-feira, 2 de março de 2010

sabor (fragmento)


(...) de soslaio
Sou isso:
Um doce
Um ácido
Uma divagação incompleta...

Aquilo que transcendo, supero...


(a quem interessar possa...)

Nestas falsas incursões
Nefasta hora de se fazer quem é
Do pulso incandescente que nos faz vivos
Compartilhado e não compreendido
Mata-nos um pouco a expressão própria

Verme, infeliz, decadente, comum
Se esconde nesta armadura que pouco reluz
E não és mais que palavras vazias
Procurando sentido na carne alheia
Mas suas palavras, baby, já nasceram condenadas...

Transcendo minha carne em razão
Sendo mais que esta vã imagem
E num voto de confiança vencido
Viro fera e te delato
E me livro do que representas

Meu inferno está na incompreensão,
No excesso do nada que te faz ordinário
Minha carga te reduz, se assim eu quiser
Sem que jamais se levantes (aqui)
Perante aquilo que desconheces...

**Este poema foi escrito em resposta ao Desafio Poético do fórum WAF.